1.1 / Panóptico
1.1.1 / Introdução
Em Vigiar e Punir, Foucault retrata a história do poder de censurar desde o suplício dos corpos próprio da Idade Média ao sistema penal moderno, dotado de dispositivos arquitectónicos políticos conhecidos por ‘prisões’.
Foucault descreve a mudança de paradigmas na imposição da lei, a partir da evolução dos dispositivos técnicos que lhe serviram ao longo do tempo, representando o aparecimento do cárcere um dos maiores pontos de viragem na história do castigo.
A prisão significou o fim do espetáculo da punição pública, na forma de execuções e trabalhos forçados, fontes activas de signos, ditando o surgimento de uma nova tecnologia do poder, a vigilância.
A mesma encontra o seu expoente máximo no projecto arquitectónico de Jeremy Bentham, o Panóptico.
1.1.2 / O aparecimento da Prisão
O domínio sobre o corpo do condenado associado ao espectáculo publico da execução, cujo alvo principal era o controlo do povo - política do medo, bem como o processo inquisitorial e secreto sob a forma de interrogatórios com recurso à tortura caracterizaram a forma de justiça da Idade Média.
As execuções públicas com recurso a instrumentos de tortura física como a roda ou a fogueira, caracterizavam a cerimonia “aterrorizante” que tinha como objectivo a representação do castigo, e a sua fixação na mente da assistência, para que jamais se repetisse tal crime. Como ajuizavam os juristas da época, “Se são necessárias penas severas é porque o exemplo deve ficar profundamente marcado no coração dos Homens” (Foucault, 1975, p.60).
Contudo, se as penas desta época são públicas, o mesmo não acontece com o processo judicial, este desenvolve-se secretamente, não sendo do conhecimento do acusado a acusação de que é alvo, as provas da sua culpa, bem como a identidade de quem denuncia. A validade deste processo baseia-se sobretudo numa sucessão de interrogatórios com recurso a tortura, com vista à obtenção da confissão por parte do acusado.
De facto, a aplicação da lei através do sofrimento físico insuportável e do espetáculo público representa a soberania do rei, e o seu poder desmesurado sobre todos os corpos, o criminoso é visto como um inimigo do soberano, alguém que viola as suas leis. Assim, em vez de uma forma de repor a justiça, o suplício é uma forma de reactivar o poder do rei. Sobre o papel do soberano, o autor clarifica: “o seu objectivo não é tanto restabelecer um equilíbrio, mas fazer jogar, até ao seu ponto extremo, a dissimetria entre o súbdito que ousa violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer a sua força”.
Gradualmente, o rito da execução vai perdendo a sua pompa inicial e vê-se obrigado a modificar-se nos seus métodos. Uma das razões apontadas para a falibilidade desta técnica é o facto da multidão que assiste, a qual desempenha um papel determinante no cumprimento dos objectivos deste teatro horrível, ter o poder de recusar a punição, impedindo o cumprimento da lei, ‘arrancando’ o condenado das mãos do carrasco e exigindo o perdão do soberano pela força. Estes desvios ao desfecho previsível das penas fragilizavam o poder e podiam até transformar o condenado em herói popular, chegando a existir relatos de condenados que, depois de mortos, foram considerados santos.
Já na segunda metade do séc. XVIII, o protesto contra o suplício torna-se evidente entre os filósofos e os teóricos, mas também entre os juristas e parlamentares, glorificam-se os ‘reformadores’ Cesare Beccaria (1738-1794) e Joseph Michel Antoine Servan (1737-1807) entre outros e a necessidade de uma punição livre do sofrimento físico, uma reforma do poder, começa a desenhar-se.
Contudo, estas transformações sociais não representam, para o autor, um novo respeito pela humanidade, sendo ainda frequentes os suplícios, mas sim a necessidade de uma justiça mais perspicaz, e um controlo penal mais apertado, menos dependente da vontade do povo e da vaidade do soberano. Por último, deve-se ainda à necessidade de pôr termo aos múltiplos privilégios inerentes a cada classe, já que estes tornam inconsistente o processo da justiça.
Iniciou-se no séc. XVIII a nova teoria jurídica do sistema penal, a “reforma”, ou como refere o autor, “uma nova economia política”, já que na sua origem não estiveram apenas os humanistas ou os filósofos mais esclarecidos, como Voltaire, ou os publicistas Marat e Brissot, mas sobretudo magistrados com interesses diversos, partilhando entre si o interesse único de distribuir o poder do soberano, despojando-o do direito de legislar.
A história do sistema judicial ficou desde então dividida em duas fases, o Antigo Regime, do qual era característico o suplício e o recurso à representação - punição; e o Novo Regime, iniciado pela reforma e do qual se destacou um abrandamento das penas físicas acompanhado de uma maior rentabilidade e eficácia associadas à vigilância.
Embora este abrandamento das penas tenha acompanhado uma diminuição dos crimes violentos, o Antigo Regime tinha, ao longo de vários anos, cultivado uma margem de tolerância à ilegalidade para cada estrato social. Com o aumento geral da riqueza e o crescimento demográfico da segunda metade do século XVIII, iniciou-se uma transformação na natureza dos crimes populares mais recorrentes. Desta forma, os crimes relacionados com bens vieram substituir os crimes relacionados com direitos, a pilhagem sobrepôs-se ao assassínio e à luta armada. Ainda que menos graves do ponto de vista humanista, do ponto de vista económico os crimes como a pilhagem eram insuportáveis para a burguesia, para o comercio e para a industria, originando-se desta forma a necessidade de vigiar, controlar e recodificar todas as práticas ilícitas.
A par do abrandamento das penas, da codificação mais clara das leis e da redução da arbitrariedade, impõe-se um ajustamento do sistema penal com vista a um “aparelho para gerir de forma diferencial os ilegalismos”, é necessário definir uma estratégia para atingir um alvo que é tanto menos grave como mais difuso no corpo social.
Dado que o poder de legislar já não se concentra no soberano e sim em magistrados que, de certa forma, perseguem os interesses da sociedade, o criminoso passa a ser visto não como alguém que viola as normas do rei, mas como alguém que desrespeita toda a sociedade “Com efeito, a infracção opõe um indivíduo a todo o corpo social” (Foucault, 1975, p.104).
Mais uma vez, se o dano material for colocado de parte, o maior prejuízo que qualquer crime provoca na sociedade é a desordem que introduz, o exemplo que abre precedentes à potencial repetição, a possibilidade de generalização. Assim, a vantagem do crime terá que ser sempre inferior ao dano da punição. Nas palavras de Beccaria, “Para que o castigo produza o efeito que se espera, basta que o mal que cause supere o bem que o culpado retirou do crime”. (Beccaria, 1764, p.89)
A punição já não incide no corpo do condenado, mas continua a utilizá-lo sob a forma da representação da pena. As leis e os crimes passam a ser claros, em relação à Idade Média, e é elaborada legislação escrita, acabando com a tradição oral. A verificação dos crimes passa a obedecer a critérios mais rigorosos, é agora necessária uma demonstração cabal do crime e a tortura nos interrogatórios é gradualmente abandonada.
Com vista à elaboração de um código legislativo exatamente adaptado a cada infracção, nasce a necessidade da individualização - a natureza do criminoso, o seu modo de vida e os seus antecedentes começam a diferenciá-lo do ponto de vista da justiça, interessando sobretudo averiguar a probabilidade de uma reincidência.
Voltando ainda ao exercício do poder pela representação, a submissão dos corpos é agora executada pelo controlo das ideias - ocupando a fixação de signos do poder a forma mais avançada de controlar a infracção. Citando Servan, “e sobre as fibras moles do cérebro assenta a base inabalável dos mais sólidos impérios”
(Servan, 1767, p. 35).
Assim, postulava-se, nesta fase, a criação de ligações directas entre a natureza do delito e a natureza da punição - aquele que mata será morto; aquele que é preguiçosos será forçado a trabalhar. Desta forma, as penas perdem o caracter espetacular e passam a ter um cariz ‘pedagógico’. Há também uma mudança no paradigma na apropriação do corpo do condenado, enquanto no sistema antigo o mesmo é visto como propriedade do rei, no novo regime é propriedade do corpo social, um bem ao serviço de todos.
Iniciam-se assim, os trabalhos públicos, como forma de restituição da perda causada à sociedade. Neste sentido, o culpado cumpre duas vezes a pena, pelo trabalho escravo que presta ao corpo social e pelos signos que fornece aos outros cidadãos - “utilidade secundária, puramente mural, mas muito real.” (Foucault, 1975, p.128).
Simultaneamente, extingue-se a potencial glória dos criminosos, através do enraizamento do discurso moralista da lei nos indivíduos, nas famílias e na sociedade. “E a memória popular reproduzirá nos seus rumores o discurso austero da lei.”
(Foucault, 1975, p.132)
A ideia da pena uniforme é banida, cada castigo deve então ser adaptado ao crime, dando origem a um largo manancial de castigos invulgares, a reclusão aparece desta forma como pena para quem atenta ou abusa da liberdade, no primeiro caso serve de exemplo o rapto, no segundo a desordem pública. Contudo, este novo dispositivo arquitectónico é altamente criticado, além de ser dispendioso, mantém o condenado no ócio e não oferece qualquer representação à sociedade.
Apesar de todas as críticas desfavoráveis, a reclusão tornou-se em pouco tempo na forma mais comum de castigo, ocupando quase totalmente o campo das punições possíveis. Com efeito, os trabalhos forçados não eram mais do que uma forma de encerramento, o mesmo acontecia com o encerramento correccional e com a colónia penal. A popularização da prisão tomou tais proporções que a partir da Restauração e durante a monarquia de Julho existiam cerca de 40 000 reclusos nas prisões francesas.
Desta tendência resultou o extremo oposto do princípio formulado vinte anos antes sobre as penas específicas e ajustadas a cada criminoso, as prisões eram sobretudo uma forma de acabar com o espetáculo da punição e, por outro lado, constituíam uma forma de homogeneizar as penas.