1.1 / Panóptico
1.1.3 / O aperfeiçoamento das Técnicas de Poder
O principal factor apontado pelo autor para a generalização da reclusão encontra-se no aparecimento, durante a época clássica, de grandes e prestigiosos modelos de encarceramento - Rasphuis de Amesterdão, aberto em 1596 é apontado como o mais antigo. Neste estabelecimento prisional, a duração das penas era definida pela administração em função do comportamento do recluso, o trabalho era obrigatório, remunerado e realizado em grupo.
Contudo, a importância deste modelo incidiu numa estratégia de ocupação estrita do tempo do recluso, partindo do principio de que a ociosidade é a principal causa do crime. A criação de um sistema de proibições / obrigações, sob permanente vigilância, complementado por leituras espirituais e exortações com o intuito de suprimir ‘maus instintos’ constituía o quotidiano dos condenados.
Historicamente, Rasphuis de Amesterdão marcou o inicio de uma nova técnica de poder que dominava os indivíduos e mantinha a ordem social por meio de uma transformação pedagógica e espiritual efectuada através do constante emprego do tempo, que o autor designa de princípio do trabalho.
Este estabelecimento prisional é, portanto, considerado a base fundamental sob a qual se ergueram as casas de correcção desta época (cada estabelecimento incidia particularmente num determinado principio, mas todos assentavam no principio do trabalho). Com efeito, a este princípio, o modelo inglês acrescenta o isolamento como forma de evitar a promiscuidade na prisão e a possibilidade de evasão. Desta forma, para fomentar uma mudança individual de cariz moral e religioso, este modelo recorre à cela e o encarceramento com fins de coerção do indivíduo passa a estar previsto no sistema das leis civis. “A cela, essa técnica do monaquismo cristão e que só subsistia nos países católicos, torna-se, nesta sociedade protestante, o instrumento pelo qual se pode reconstituir plenamente homo economicus e a consciência religiosa.” (Foucault, 1975, p.143)
A prisão norte-americana de Walnut Street, aberta em 1790, é referida pelo autor como um modelo que tornou evidentes características presentes de forma subliminar nos restantes modelos prisionais, por exemplo o ‘princípio da não publicidade da pena’ que, ao contrário do sistema utilizado na Idade Média dá a conhecer publicamente as razões da condenação, escondendo a sua execução. O público deixa de ter parte activa na condenação cujo processo é agora desenvolvido entre o recluso e os seus vigilantes.
A observação dos condenados adquire então um carácter determinante no funcionamento das prisões, o conhecimento permanentemente actualizado dos indivíduos permite a sua melhor distribuição, uma adaptação da pena, um controlo mais efectivo e resultados tanto mais rápidos como eficazes. “A prisão torna-se uma espécie de observatório permanente”. (Foucault, 1975, p.147)
Torna-se evidente que o castigo requer métodos que individualizem a pena, na duração, na intensidade e na natureza, de forma a ajustar o castigo ao carácter do indivíduo, com o objectivo principal de evitar e prevenir a reincidência do crime.
Embora seja unânime a necessidade de individualização dos condenados, verifica-se ainda grande disparidade nas técnicas utilizadas. De acordo com o autor, em finais do séc. XVIII vigoram três formas distintas de punição. A primeira, baseada no direito ou vingança do soberano sob o corpo do condenado, controla pela instigação do medo. A segunda técnica, constituída pelos juristas reformadores, caracteriza-se por um controlo exercido a partir da ‘requalificação‘ dos indivíduos, utilizando para isso associações de signos (crime - punição; abuso da liberdade - privação da mesma).
A última e mais recente técnica é a instituição prisional, opera a partir de um ‘adestramento do corpo’, e em detrimento da utilização de representações, privilegia a realização de ‘exercícios’. A imposição de hábitos e comportamentos realizada a partir destes ‘exercícios’ vem substituir as representações, os signos e o espetáculo. Neste sentido, verifica-se uma sucessão de tecnologias de poder: o suplício do corpo, a manipulação da consciência (referida pelo autor como ‘alma’) e o modelo do corpo adestrado com base na coerção.
1.1.4 / A Disciplina
No início do séc. XVII, J. J. Walhausen referia-se à ‘disciplina estrita’ como a arte do bom adestramento (J. J. Walhausen, 1615, p.23), a mesma já não actua a partir de manifestações excessivas próprias da Idade Média, constituindo uma forma de poder tanto mais ‘modesta’ como permanente. Por sua vez, a disciplina actua fabricando indivíduos, como se estes fossem simples instrumentos do seu exercício.
Progressivamente os processos que constituem o poder disciplinar vão-se instalando no aparelho judiciário, sendo determinantes para o seu resultado eficaz três instrumentos fundamentais: a ‘vigilância hierárquica’, a ‘sanção normalizadora’ e o exame.
Com efeito, o exercício da disciplina requer um dispositivo de vigilância, onde seja clara a coerção e quem está sob o seu domínio. À medida que se desenvolve a tecnologia do telescópios e das lentes na nova física, assiste-se à construção de dispositivos de observação da multiplicidade humana, em técnicas de submissão e rentabilização.
O acampamento militar é aqui referido como um modelo “quase ideal” de observatório, já que permite uma mutação livre dos espaços que o constituem de forma a exercer uma vigilância calculada e meticulosa, “O acampamento foi para a arte pouco recomendável das vigilâncias aquilo que a câmara escura foi para a grande ciência da óptica” (Foucault, 1975, p.199).
Toma parte uma mudança de paradigmas em torno do controlo com recurso ao enclausuramento, e o simples encerramento é substituído pelo cálculo estratégico das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens e das transparências. Neste sentido, os edifícios onde circulavam e se organizavam massas, como a escola, a fábrica ou o hospital começam, à semelhança das penitenciárias, a ser delineados como aparelhos disciplinares e as instituições passam a ter o papel de vigiar, normalizar e instrumentalizar os indivíduos.
Na escola, os quartos com grandes janelas para o corredor, são dispostos ao longo do mesmo numa série de ‘pequenas celas’, existindo um oficial de vigia em intervalos regulares de espaço. Com o aumento das fábricas, das grandes oficinas e do número de operários, a vigilância passa a ser um operador económico preponderante já que em larga escala, qualquer incorrecção repetida diariamente pode tornar-se avassaladora e resultar na perda de capitais.
Fig.3 N. Andry, L'orthopédie ou l'art de prevenir et de corriger dans des enfants les difformités du corps, 1749.
Nos hospitais, a inspecção descontínua e rápida feita pelo médico vai-se aproximando de uma vigilância regular e contínua do paciente, o mesmo é submetido a uma observação permanente. Através da vigilância hierarquizada, o domínio sobre o corpo passa a ser realizado segundo regras da óptica e da mecânica, diminuindo gradualmente o recurso ao excesso e á violência. Segundo Foucault, “o poder é tanto menos corporal quanto mais sabiamente físico.” (Foucault, 1975, p.205)
Como efeito secundário, as disciplinas estabeleceram o que o autor designa de ‘infrapenalidades’, a punição para um conjunto de comportamentos que até então, devido à sua relativa irrelevância permaneciam por regular. Esta micropenalidade podia incluir um manancial de regras banais como saudar o mestre à entrada na oficina ou a proibição de divertir os colegas de trabalho.
Passa então a dominar uma micropenalidade do tempo, que sanciona atrasos, falhas e interrupções indevidas das tarefas; da atenção relativa à negligência no cumprimento dos exercícios do carácter; do corpo e do discurso. Os aspectos mais ténues do comportamento passam a ser vigiados, sancionados e normalizados. A disciplina promove, desta forma, uma perseguição constante a todo e qualquer desvio comportamental e o “Normal” estabelece-se, desde o séc. XVIII, como princípio de coerção no ensino, operando com vista a uma educação homogeneizada. Assim, a educação passa a ser simultaneamente uniformizadora e individualizante, no sentido em que avalia e classifica os desvios de cada aluno. À semelhança da vigilância, a normalização torna-se nesta fase, um dos mais eficazes instrumentos de poder.
Por fim, o exame combina as técnicas da vigilância hierárquica com a sanção normalizadora, constituindo um tipo de vigilância que através da classificação diferencia e pune os indivíduos, com vista a uma crescente normalização.
O momento do exame é comparado à aparição solene do soberano na idade média, sendo que aqui os sujeitos não recebem directamente a imagem do poder do soberano, mas exibem em si mesmos os seus efeitos - pela forma adestrada com que participam na celebração do exame. Simultaneamente, a generalização do exame dá origem à documentação / arquivo individualizante. Nos hospitais, escolas, fábricas e exércitos, a cada indivíduo passa a equivaler o seu correspondente documental. No contexto escolar, este conjunto de documentos e anotações têm a função de informar sobre os hábitos do aluno, os seus progressos, “a sua devoção ao catecismo”, de forma a erradicar desvios e a uniformizar o corpo estudantil.
A escrita disciplinar, como refere o autor, marca o início de uma formalização do indivíduo que o coloca definitivamente no interior das relações de poder.
Os processos disciplinares, marcados pelo exame e pela descritibilidade do indivíduo refletem uma mudança de paradigmas, ou o que o autor chama de inversão do eixo político da individualização. Durante muito tempo o facto de alguém ser descrito em pormenor em biografias e retratos era considerado um privilégio ao alcance da nobreza, com o aparecimento das técnicas documentais que substituem o conceito de indivíduo pelo conceito de “caso” dá-se uma inversão dos valores relativos à individualização e à vida privada.
Na sociedade disciplinar, o sujeito é uma realidade fabricada por uma tecnologia do poder, que neste caso opera através da vigilância hierarquizada, da disciplina e celebra o seu auge no ritual do exame. Contudo, se o poder tem efeitos negativos como a exclusão, a repressão ou a censura, é também da sua natureza a produção do real, citando o autor “o indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter decorrem desta produção”. (Foucault, 1975, p.224)